sexta-feira, 11 de março de 2016

PERTO DO CORAÇÃO NAUFRAGADO (inédito)



                     PERTO DO CORAÇÃO NAUFRAGADO
                                   ( no dia internacional da mulher e dedicado à Virgínia Woolf)



                  Esperou que marido e filho acabassem de  comer. Naquele dia tinha-se esmerado na preparação de um jantar festivo, consumira um bom par de horas, num rodopio labiríntico entre o forno, a varinha mágica e o liquidificador. Metera até uma falta no escritório para que a confecção do jantar tivesse o deslumbramento dos deuses. Aquele dia era também o seu dia.
               Vi-os depois levantarem-se da mesa, o bolo comemorativo ainda mastigado à pressa, o filho direito ao quarto onde se embrenharia na atracção do portátil e o marido a preparar-se para ir até ao café. Nessa noite jogava a sua equipe de futebol e ele juntava-se ritualmente aos seus camaradas clubísticos numa exaltação de circo romano.
                   Sozinha, deitou os restos de comida no lixo - o que não era seu hábito, sempre cuidadosa nas poupanças -lavou a  loiça, e sentou-se à mesa a fumar um cigarro. Um silêncio fúnebre envolveu-a e sentiu de novo aquele gélido arrepio de perturbação que há uns tempos lhe vinha mordendo o pensamento: "Que estava a fazer naquele lar?".
                  Já no quarto preparou uma pequena mala com a roupa essencial e produtos de higiene, e desandou porta fora sem olhar para trás ou sem um mínimo de remorso. Meteu-se num táxi que a deixou no outro lado na cidade num hotel de circunstância e medíocre,  disfarçada com uns óculos escuros e o cabelo para os olhos. 
           Sentou-se na cama sem nunca despir a roupa que usava, lendo "Mrs. Dalloway" de Virginia Woolf. Dias depois, tendo chegado ao fim da imperiosa leitura, partiu de comboio para Espanha, atravessou os Pirenéus e Mancha só parou em Inglaterra.  
Só voltou ao lar trinta anos depois, quando soube que o seu único filho iria morrer de sida.



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